A difícil tarefa de tributar as transações com softwares.
Publicado em 15 de novembro de 2017
1. Introdução
Poucos assuntos tem suscitado tantas discussões tributárias como as transações com softwares. A velocidade da transformação da economia física para a digital traz novas abordagens ao assunto e movimenta especialistas em tributação de diversos países.
No âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), está em discussão, como ação do BEPS, o Action Plan 1: Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy, o que dá mostra da importância do tema para os países mais desenvolvidos.
No Brasil, o estudo da tributação das novas tecnologias também está presente em diversas frentes. O Núcleo de Estudos Fiscais, liderado por professores da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, vem lançando importantes reflexões sobre o tema, que também tem sido objeto de discussões e análises em diversas associações de classe e órgãos de Governo.
Também o Superior de Tribunal de Justiça, em publicação especial no dia 12/11/2017, ao tratar de Direito Autoral, destacou que o avanço das tecnologias digitais e de comunicação revolucionou o acesso às músicas, aos filmes, às séries e aos vídeos em geral, concluindo que não há mais necessidade de adquirir um suporte físico para ter acesso a essas obras, incluindo neste contexto o streaming, tecnologia que possibilita a transmissão de dados e informações, de forma contínua, pela rede de computadores.
É fora de dúvida, portanto, que quando tratamos de novas tecnologias, as inovações presentes na maneira como fazemos negócios, nos locomovemos, nos vestimos, nos alimentamos, nos informamos, nos divertimos, monitoramos nossa saúde e até mesmo a educação dos nossos filhos, passam necessariamente pelo desenvolvimento, comercialização e utilização de softwares.
Com a certeza de que o tema adstrito a novas tecnologias, a exemplo da chamada IoT (sigla em inglês para Internet of Things – Internet das Coisas), abarca discussões bem mais aprofundadas, faz-se necessário ressaltar que este artigo ficará restrito à tributação de transações com softwares, por si só, suficientemente complexas no contexto brasileiro.
Para boa compreensão do tema, o texto apenas fará referência aos dois principais posicionamentos dos Tribunais Superiores sobre a matéria, sem contudo aprofundá-los, passando pela legislação e principais decisões administrativas que vem pautando a atuação dos profissionais chamados a lidar com a problemática fiscal.
2. As leis que regulam os Programas de Computador e os Direitos Autorais
Em âmbito nacional, em 19/02/98 foi editada a Lei nº 9.609 (Lei do Software), publicada no DOU de 20/02/98, com retificação em 25/02/98, dispondo sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador e sua comercialização no País.
Referida Lei, em seu art. 1º, define programa de computador como:
“A expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”.
Já a lei 9610, editada e publicada, respectivamente nas mesmas datas da lei acima, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais, estabelecendo em seus arts. 3º e 7º, o seguinte:
Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis, classificando como obras intelectuais protegidas, as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como (…) os programas de computador (inc. XII).
3. Software de prateleira X Software por encomenda
No início, com o advento das primeiras discussões acerca da tributação dos softwares, a questão esteve concentrada na dicotomia software de prateleira e software por encomenda. Vejamos a referência a decisões do STF e STJ que bem enfatizam esta distinção:
STF RE 176626/98 : Incidência do ICMS sobre a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado "software de prateleira".
STJ – AREsp 32547/11: Incidência do ISS sobre programas de computador (software), desenvolvidos para clientes, de forma personalizada.
Superada a questão no âmbito judicial, no qual o contribuinte poderá buscar guarida, a qualquer tempo, de forma a fazer valer seu direito, é certo que no cotidiano das transações atuais a classificação como software de prateleira ou software por encomenda já não é suficiente para endereçar todos os aspectos tributários, uma vez que os entes tributantes tem legislado e decido sobre a matéria, sem necessariamente considerar tal distinção.
4. Legislação e decisões administrativas, histórico de diversas alterações
Muito em razão da transformação digital e novas tecnologias, a legislação fiscal que trata da tributação dos programas de computador vem sendo modificada ao longo dos anos, muitas das vezes com alterações no direcionamento e interpretação até então estabelecidos. Vejamos um breve contexto histórico da legislação de regência:
4.1. Âmbito municipal e estadual (ISS e ICMS)
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Lei Complementar 116/03: Incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.
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Decreto 51.619/07-SP: Incidência do ICMS na operação realizada com programa para computador ("software"), personalizado ou não.
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Resposta a Consulta 135/12-SP: Operações com programas de computador ("softwares"), personalizados ou não, estão sujeitas à incidência do ICMS.
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Convênio ICMS 181/15: Incidência ICMS nas operações com softwares, disponibilizados por qualquer meio, inclusive transferência eletrônica de dados.
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Decreto 61.522/15-SP: A base de cálculo do ICMS passa a ser o valor da operação, que inclui o programa, o suporte informático e outros valores cobrados do adquirente.
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Decreto 61.791/16-SP: Suspende a exigência do ICMS dos softwares por dowload ou streaming, até que fique definido o local de ocorrência do fato gerador.
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Lei Complementar 157/16: Estabelece a incidência de ISS: (i) no processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos ; (ii) na elaboração de programas de computadores, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em que o programa será executado; e (ii) na disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos.
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Parecer Normativo 01/17 – Município de São Paulo: Determina cobrança de ISS sobre o “download ou Software as a Service – SaaS”, por encomenda ou padronizado.
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Decisão Normativa CAT 4/17-SP: ICMS - Esclarecimento quanto à distinção dos softwares em: (i) softwares desenvolvidos sob encomenda, sujeitos ao ISS; e (ii) softwares prontos, sujeitos ao ICMS, distribuídos por meio físico ou digital, tanto por download como por streaming (utilização do software “na nuvem”).
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Convênio 106/17: Estabelece a cobrança do ICMS sobre bens e mercadorias digitais, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados.
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Lei 16.757/17 - Município de São Paulo: Determina a incidência de 2,9% de ISS sobre os itens listados na Lei Complementar 157/16 e demais serviços de internet e congêneres, incluindo licenciamento ou cessão de direitos de uso de software, streaming e publicidade na internet.
O que se depreende da série de normas listadas acima é um manifesto conflito de competência entre Estado e Município, ambos com a pretensão de cobrar seus principais tributos (ICMS e ISS, respectivamente), sobre um mesmo fato gerador. A persistir esta situação sem que haja definições claras através de lei complementar, o Judiciário fatalmente será chamado pelos contribuintes para dirimir a questão.
4.2. Âmbito Federal (IRRF, CIDE, PIS e COFINS)
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Decreto 3.000/99 - RIR - Art. 710: Incidência de IR fonte, à alíquota de quinze por cento, sobre as remunerações para o exterior a título de royalties, a qualquer título.
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Lei 10.168/00: Institui a CIDE, devida pela pessoa jurídica detentora de licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos, bem como aquela signatária de contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior.
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Lei 10.322/01: Ampliou o fato gerador da CIDE, acrescentando-lhe os serviços técnicos e de assistência administrativa e similares e os royalties a qualquer título.
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Lei 11.452/07: Estabeleceu que a CIDE não incide sobre a remuneração pela licença de uso ou de direitos de comercialização ou distribuição de programa de computador, salvo quando envolverem a transferência da correspondente tecnologia.
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Solução de Consulta COSIT 303/14: PIS e COFINS sobre o faturamento, regime de apuração cumulativa para empresas de informática, para atividades com software.
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Solução de Divergência COSIT 18/17: Incidência do IR Fonte nas remessas ao exterior para pagamentos de software (royalties).
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Solução de Consulta COSIT 191/17: Incidência de IR Fonte e CIDE na remessa ao exterior para remuneração de software as service (Saas).
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Solução de Consulta COSIT 303/17: Não incide PIS/Cofins na importação de software de prateleira, mediante adesão a contrato de licenciamento ou sublicenciamento de uso, na hipótese de este ser disponibilizado por download ao licenciado ou sublicenciado usuário final.
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Solução de Consulta COSIT 340/17: (i) Não incide PIS/Cofins Importação sobre a remuneração a domiciliados no exterior a título de transferência de tecnologia na parte referente a royalties, desde que no documento que fundamentar a operação, estes valores estejam discriminados e apartados das importâncias devidas pelos demais serviços que também são objeto de referido documento. (ii) Incide PIS/Cofins Importação sobre a remuneração a domiciliados no exterior a título de transferência de tecnologia, na parte do fornecimento de tecnologia e à prestação de assistência técnica. (iii) Incide PIS/Cofins-Importação sobre a remuneração a domiciliados no exterior a título de despesas com treinamento técnico. Caso o documento que lastreia a operação não seja suficientemente claro para individualizar o valor correspondente a fornecimento de tecnologia e assistência técnica e o valor correspondente a royalties, o valor total deverá ser considerado referente a serviços e sofrer a incidência das mencionadas contribuições.
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Solução de Consulta COSIT 407/17: Sujeitam-se à retenção de PIS/Cofins, IR e CS as operações com software sob encomenda. Não se submetem a estas retenções os softwares licenciados de forma geral, não exclusivos. Os serviços de manutenção ficam sujeitos à retenção.
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Solução de Consulta COSIT 431/17: Incidem PIS/Cofins sobre os royalties recebidos do exterior, em pagamento pelo licenciamento de tecnologia, por não configurarem receita de venda de mercadorias ou de prestação de serviços, razão pela qual não se enquadram nas hipóteses de não incidência das Contribuições nas exportações.
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Solução de Consulta COSIT 441/17: É isenta de CIDE a remessa a residente no exterior relativa à remuneração de software, salvo quando envolver a transferência de tecnologia.
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Solução de Consulta COSIT 448/17: PIS/Cofins - (i) As receitas de empresas do Lucro Real decorrentes da comercialização ou cessão de direitos de uso de softwares importados estão sujeitas a apuração não cumulativa. (ii) Não incide PIS/Cofins-Importação na remessa de valores a residentes no exterior a título de royalties como contrapartida pelo licenciamento de softwares. Porém, se no contrato de licenciamento houver a previsão de prestação de serviços de manutenção e suporte técnico, a esses serviços incidirão as contribuições. Nos casos em que o contrato não for suficientemente claro para individualizar esses componentes, o valor total deverá ser considerado referente a serviços e, com isso, sofrer a incidência das contribuições.
5. Conclusão
Como se observa, as operações com softwares, dada a disputa pelos entes tributantes, tem se tornado cada vez mais onerosas e fiscalmente complexas, aumentando a insegurança daqueles que tem por tarefa aplicar o Direito de sobreposição Tributário a cada fato concreto.
Além do conhecimento técnico da natureza do software objeto da negociação, de forma a identificar a correta tributação, cabe aos agentes se protegerem através de cláusulas contratuais que permitam o repasse ao valor do contrato, de eventuais mudanças futuras nas regras fiscais.
Da mesma forma, é imperativo acompanhar de maneira constante eventuais alterações no posicionamento das autoridades administrativas ou mesmo dos tribunais, de forma a adequar e seus negócios e manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Por seu turno, contratantes de softwares com residentes ou domiciliados no exterior devem se preparar e considerar como local o custo tributário nas transações, com os acréscimos decorrentes do reajustamento da base de cálculo (gross up) pois, via de regra, o fornecedor estrangeiro exige o recebimento dos valores líquidos de tributos incidentes no país da fonte.
Ao final, a elevada carga tributária atingirá os usuários finais, adquirentes dos softwares, que suportarão o repasse dos tributos incidentes sobre a aquisição das tecnologias.
Dada a difícil tarefa de identificar a correta tributação dos softwares no contexto atual, cabe a cada parte envolvida fazer seu próprio planejamento, inclusive traçando a estratégia adequada quanto a possíveis discussões no âmbito administrativo ou judicial, se for o caso.