Foi publicado no DOU de 14/04 (edição extra), a Lei nº 13.988/2020, resultado do Projeto de Conversão da Medida Provisória nº 899/2019, dispondo sobre a transação nas hipóteses que especifica e incluindo o art. 19-E na Lei nº10.522, de 19 de julho de 2002, para tratar da não aplicação do voto de qualidade em caso de empate no CARF, no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, resolvendo-se o litígio favoravelmente ao contribuinte.
Apesar da ementa da Lei se referir também à alteração da Lei nº 13.464/2017, para tratar do bônus de eficiência fiscal, como uma das emendas apresentadas, a versão final da lei não incorporou estas alterações (1).
Considerando que a redação final da lei, em seu artigo 28, objeto do Projeto de Conversão, vai além da matéria que lhe deu origem, qual seja, a Transação Tributária, provoca o debate se, neste caso, não se estaria tratando de “conteúdo temático distinto daquele originário da MP”, em postura vedada pelo STF na ADI nº 5.127/DF (2). Este é o tema que será abordado neste breve artigo.
Breves considerações sobre o possível conteúdo temático distinto da MP, aprovado na Lei de Conversão.
O texto original da MP 899/2019 não dispõe sobre a inclusão do art. 19-E lei 10.522 e, por consequência, não aplicação do § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235/72 (voto de qualidade) (3), resolvendo-se o litígio favoravelmente ao contribuinte em caso de empate. Referido tema foi incluído no texto da MP através de emenda aglutinativa, que, segundo definição do Congresso Nacional, visa a fundir textos de outras emendas ou a fundir texto de emenda com texto de proposição principal, com o objetivo de promover a aproximação dos respectivos objetos.
Fato é que a não aplicação do voto de qualidade, da maneira como foi endereçada, já sofre críticas por parte de especialistas, tanto do Estado, quanto do setor privado (4), impondo dúvidas se estamos diante do mesmo objeto tratado na MP e até indagando se não seria o caso, então, de permitir à União Federal recorrer ao judiciário (vide PL 6064/2016) (5), nas decisões do CARF em que, havendo empate, resolve-se favoravelmente ao contribuinte ou sujeito passivo, sem aplicação do voto de qualidade previsto no § 9º do art. 25 do Decreto 70.235/72, que, aliás, não foi revogado.
A violação ao disposto pelo STF na ADI nº 5.127/DF – Haveria conteúdo temático distinto daquele originário da MP?
Se considerarmos que a não aplicação do voto de qualidade no caso de empate, resolvendo-se a demanda em favor do contribuinte, não faz parte do conteúdo temático original da MP 899/2019, é de se indagar se tais inclusões ferem o quanto decidido pelo STF, na ADI 5.127/DF.
Na referida ADI, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado na ação direta com cientificação do Poder Legislativo de que o Supremo Tribunal Federal afirmou, com efeitos ex nunc, não ser compatível com a Constituição a apresentação de emendas sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida a sua apreciação, vencidos os Ministros Rosa Weber (Relatora), Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que julgavam procedente o pedido, e, em maior extensão, o Ministro Dias Toffoli, que o julgava improcedente. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 15.10.2015.
À época, destacou-se o voto do Ministro Edson Fachin (6), redator para o acórdão, ao lembrar que “em sede doutrinária, a prática ora analisada não passou despercebida em razão de seu caráter pernicioso para a democracia, já tendo sido denominada de “contrabando legislativo”.
Prosseguiu afirmando que “essa ampla liberdade concede grande poder para a maioria do Congresso Nacional, que vota os ‘excertos legislativos’ de maneira rápida e sem discussão, criando um novo espaço de intervenção majoritária nesse processo. Com isso, vozes dissidentes são emudecidas e as regras e os princípios constitucionais são desrespeitados, vilipendiando, assim, o modelo de democracia pluralista.”
Ainda, “outro agravante de relevo, já há muito denunciado no Senado Federal, diz respeito ao esgotamento de todo o tempo de tramitação do PLV [Projeto de Lei de Conversão de Medida Provisória] na Câmara dos Deputados. Desse modo, o PLV entra em regime de urgência e trava as discussões existentes na Casa Alta do Congresso Nacional, fazendo com que a maioria simplesmente aprove essas emendas sem pertinência temática.”
“Sabe-se que o controle do tempo no processo legislativo é prática corriqueira. Contudo, não é admissível que temas relevantes, que deveriam ser intensamente discutidos pelos parlamentares, passem por uma tramitação ultra célere no Congresso Nacional, impossibilitando um maior debate democrático.”
Diante do exposto, concluiu o Ministro Edson Fachin pelo reconhecimento da inconstitucionalidade formal decorrente da impossibilidade de se incluir emenda em projeto de conversão de Medida Provisória em lei com tema diverso do objeto originário da Medida Provisória.
Medidas judiciais que já se apresentam contestando a não aplicação do voto de qualidade
O procurador-geral da República, apresentou ao STF, em 28/04, Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, para suspender imediatamente o artigo 28 da Lei 13.988/20.
A PGR alega discrepância entre a proposição da MP 899 e a lei aprovada pelo Congresso. Enquanto a primeira tratava da transação tributária, o artigo 28 da Lei 13.988 disciplinou aspecto procedimental do julgamento de processo administrativo, tema alheio ao objeto original da medida provisória.
Essa prática, conforme lembrou a PGR, passou a não mais ser admitida desde o julgamento da ADI 5.127/DF, em maio de 2016, quando o STF entendeu não ser possível o que ficou conhecido como “contrabando legislativo”.
A ADI, que recebeu o nº 6.399, foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio. Outra ADI (6403), movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), também questiona o artigo da lei, bem como, a ADI 6415, movida pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip). A imprensa especializada ainda noticiou a existência de ação civil pública movida pelo Instituto Nacional de Defesa em Processo Administrativo (Indepad). Outras medidas judiciais, certamente poderão ter sido ajuizadas, fato que torna a prevalência do empate a favor dos contribuintes, medida ainda incerta.
Considerações finais
Seria razoável, portanto, concluir que o fim do voto de qualidade na Lei nº 13.988/2020 é inconstitucional? Sob o aspecto formal, alguns defendem que sim, conforme entendimento consolidado na ADI 5.127/DF – isto é, o fato de a matéria não ter sido tratada na medida provisória. Sob o aspecto da substância, ou seja, dar ao contribuinte o direito da dúvida, nos termos do art. 112 do Código Tributário Nacional, a questão passa a ser bem mais complexa, em se tratando de julgamentos de processos administrativos, com o crédito tributário já constituído (7).
Fato é que a questão não está pacificada dentro da comunidade jurídica, o que poderá refletir fortemente na relação Fisco e contribuinte. A ausência de debate amplo no processo legislativo desta questão pode trazer impactos relevantes, que devem ser considerados para a análise da constitucionalidade do art. 28 da referida Lei.
Reginaldo Angelo dos Santos.
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(1) http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.988-de-14-de-abril-de-2020-252343978
(2) http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=309458851&ext=.pdf
(3) Decreto 70.235/72 - Art. 25 § 9º - Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas
especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente,
por representantes dos contribuintes.
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/entidade-empresariais-ganham-a-palavra-final-sobre-disputas-tributarias.shtml
https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/direto-carf-voto-qualidade-nao-problema-carf
https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/opiniao-fim-voto-qualidade-vetado-presidente
(5) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2110223
(7) Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I - à capitulação legal do fato;
II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III - à autoria, imputabilidade ou punibilidade;
IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.
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